Wednesday, June 06, 2018

A Religião e a Sexualidade


Experiências clínicas irrefutáveis comprovam que a sensibilidade religiosa provém da sexualidade inibida, isto é, que a fonte da excitação mística é a excitação sexual inibida. Disto se conclui necessariamente que uma consciência sexual lúcida e uma organização natural da vida sexual significam o fim de qualquer tipo de sensibilidade mística. Por outras palavras: a sexualidade natural é o inimigo mortal da religião mística. A igreja ao travar combate contra a sexualidade apenas vem dar razão a este ponto de vista.


Não pretendo fazer um estudo aprofundado do sentimento religioso; limitar-me-ei a enumerar factos do conhecimento geral. Os fenómenos de excitação sexual cruzam em determinado ponto o problema daa excitação religiosa, desde o mais simples fervor da fé até ao completo êxtase religioso. O conceito de excitação religiosa não deve ser circunscrito aos sentimentos vulgares no caso de pessoas profundamente crentes quando assistem, por exemplo, a uma cerimónia religiosa. Temos de incluir nele todas as excitações que são caraterizadas, no seu conjunto, por um determinado estado de excitação psíquica e física; por exemplo, a excitação de massas submissas quando escutam o discurso de um dirigente preferido; e também, naturalmente, a excitação que se sente quando se é dominado por fenómenos sublimes da natureza. Resumamos, em primeiro lugar, os conhecimentos adquiridos sobre os fenómenos religiosos antes de ser ter iniciado o estudo da economia sexual. A investigação social conseguiu provar que as formas e também os diferentes conteúdos das religiões dependem das fases de desenvolvimento das relações económicas e sociais. Por exemplo, as religiões anímicas estão ligadas ao modo de vida dos povos primitivos que viviam da caça. O modo como os homens concebem os seres divinos, sobrenaturais, é invariavelmente determinado pelo grau que atingiu a sua economia e a sua civilização. Do ponto de vista sociológico, as concepções religiosas são também em grande medida determinadas pela capacidade humana de dominar a natureza e as dificuldades sociais. A impotência perante as forças da natureza e as catástrofes sociais atua como elemento promotor na produção da ideologia religiosa nos respetivos círculos culturais. A explicação sociológica da religião relaciona-se, portanto, com a base socio-económica sobre a qual se constroem os cultos religiosos. Ele nada esclarece quanto à dinâmica da ideologia religiosa nem quanto ao processo psíquico que se desenrola nos homens sujeitos a essa ideologia religiosa.

A criação de cultos religiosos é, pois, independente da vontade do homem como indivíduo; trata-se de criações sociológicas que resultam das relações entre os homens e das relações desses homens com a natureza.

A psicologia do inconsciente acrescentou à explicação sociológica da religião uma explicação psicológica. Enquanto, anteriormente, se tinha compreendido o condicionamento social dos cultos religiosos, estudava-se agora o processo psicológico que se desenrola nos homens submetidos aos cultos religiosos objetivos. Deste modo a psicanálise pôde verificar que a conceção de deus se identifica com a do pai e a ideia da mãe de deus se identifica com a da mãe de cada um dos crentes. A trindade da religião cristã reflete diretamente o triângulo constituído pela mãe, pelo pai e pelo filho. Os conteúdos psíquicos da religião têm origem nas relações familiares desde a primeira infância.
A explicação psicológica revelou, portanto, os conteúdos da cultura religiosa, mas não revelou a energia por meio da qual esses conteúdos se inculcam nos homens. Sobretudo ficou por esclarecer de onde provêm a riqueza afetiva e o caráter marcadamente emotivo das conceções religiosas. Ficou igualmente por esclarecer por que motivo as conceções do pai prepotente e da mãe bondosa se convertem em conceções místicas e quais as suas relações com a vida sexual dos indivíduos.
Numerosos sociólogos descobriram há muito tempo o caráter sexual de algumas religiões patriarcais. Do mesmo modo se chegou já à conclusão de que as religiões patriarcais têm invariavelmente um conteúdo político reacionário. Estão sempre ao serviço da classe detentora do poder em qualquer sociedade de classes e, na prática, impedem a abolição da miséria das massas, atribuindo-a à vontade de deus e mitigando o desejo de felicidade com a esperança no além.

Os estudos da economia sexual acrescentaram as seguintes questões aos conhecimentos anteriores sobre a religião:

1)      De que modo se inculcam nos indivíduos a conceção de deus, de pecado e a ideologia do castigo que são produzidas pela sociedade e reproduzidas através da família? Por outras palavras, o que força os homens não só a aceitar essas noções religiosas, não só a não as considerar indesejáveis, mas também a aprová-las, muitas vezes entusiasticamente, e a mantê-las e defendê-las, sacrificando os mais fundamentais interesses da Vida?

2)      Quando é que se processa o inculcar das conceções religiosas nos homens?

3)      Qual a energia utilizada por esse processo

É evidente que da resposta a estas três questões depende, se não a interpretação sociológica e psicológica da religião, pelo menos, muito seguramente, a possibilidade de alterar efetivamente a estrutura dos homens. Isto porque se se concluir que os sentimentos religiosos dos homens não lhes são impostos, mas são por eles próprios absorvidos e conservados estruturalmente, muito embora em contradição com os seus interesses vitais, então forçoso será concluir que se trata de uma transformação energética que ocorre na própria estrutura humana.

A noção básica das religiões de todas as sociedades patriarcais é a negação da necessidade sexual. Esta regra não conhece exceções, se abstrairmos das religiões primitivas que aceitavam a sexualidade e nas quais o fator religioso e o fator sexual constituíam uma unidade. Na transição da organização social baseada no direito natural e materno para o direito paterno, isto é, para a sociedade de classes de tipo patriarcal, perdeu-se essa unidade entre o culto religioso e a sexualidade; o culto religioso transformou-se no contrário do sexual. Assim, deixa de existir o culto sexual, para dar lugar à subcultura sexual dos bordéis, da pornografia, da sexualidade praticada às escondidas. Não é necessário apresentar mais justificações para o facto de que, no momento em que a vivência sexual deixa de constituir uma unidade com o culto religioso, transformando-se no seu contrário, a excitação religiosa passa a ser forçosamente um substituto para o prazer perdido, anteriormente aceite pela sociedade. Só esta contradição inerente à excitação emocional religiosa, nomeadamente o facto de ser, simultaneamente, anti-sexual e um substituto da sexualidade, é capaz de explicar a força e a persistência das religiões.

A estrutura afetiva do homem verdadeiramente religioso pode ser rapidamente descrita do seguinte modo: biologicamente, ele encontra-se tão sujeito a estados de tensão sexual como todos os outros homens e seres vivos. Mas, por ter absorvido as conceções religiosas que negam a sexualidade, e especialmente pelo medo da punição que adquiriu, perdeu a capacidade para o processo natural de tensão e satisfação sexual. Sofre, por esse motivo, um estado crónico de excitação física exagerada que tem de controlar ininterruptamente. A felicidade na terra não só é para ele inatingível, mas também chega a parecer-lhe indesejável. Dado que espera a absolvição no além, está sujeito a uma incapacidade para a felicidade na vida terrena, mas, como é um ser vivo biológico e não pode, em circunstância alguma, prescindir da felicidade, da distensão e da satisfação, procura a felicidade imaginária que lhe proporcionam as tensões religiosas anteriores ao prazer, isto é, as conhecidas correntes e excitações vegetativas que se processam no corpo. Por isso, juntamente com os seus correligionários, organizará cerimónias e criará instituições que lhe permitam atingir com facilidade esse estado de excitação corporal, encobrindo, simultaneamente, a sua verdadeira essência. O seu organismo biológico constrói deste modo uma espécie de órgão, cujos sons desencadeiam no corpo aqueles mecanismos de excitação. A escuridão mística das igrejas aumenta os efeitos de uma sensibilidade tomada de modo supra-individual em relação ao próprio eu interior e dos sons adequados de um sermão, de um coral, etc.

O homem religioso encontra-se num estado de total desamparo porque, em consequência da repressão da sua energia sexual, perdeu a aptidão para a felicidade e a energia para combater as dificuldades da vida. Desamparado na vida real, tanto mais necessita de acreditar em forças sobrenaturais que o apoiam e protegem. Assim se compreende que, nalgumas situações, ele seja capaz de desenvolver um incrível poder de convicção, mesmo de indiferença passiva para com a morte. Essa força advém-lhe do amor às suas próprias convicções religiosas, que são sustentadas por excitações corporais em que o prazer é dominante. Mas acredita que essa força lhe vem de deus. A sua nostalgia em relação a deus é na realidade a nostalgia originada pela sua excitação sexual anterior ao prazer e que exige ser satisfeita. A libertação não é nem pode ser mais do que a libertação das tensões físicas insuportáveis, que só podem ser agradáveis enquanto puderem ser associadas a uma união imaginária com deus, isto é, à satisfação e à distensão. A tendência dos religiosos fanáticos para se magoarem, para atos masoquistas, etc., só vem confirmar o que dissemos. A clínica de economia sexual revelou que o desejo de ser batido ou a autopunição provêm do desejo instintivo de distensão sem culpa própria. Não há tensão física que não provoque fantasias masoquistas, se o individuo em questão se sente incapaz de produzir por si próprio a distensão. É esta a origem da ideologia da aceitação passiva do sofrimento presente em todas as religiões.

O estado real de desamparo e o sofrimento físico provocam o impulso para a consolação, apoio e sustentáculo exteriores, dirigidos contra os próprios instintos maus ou, como se diz, contra os pecados da carne. Quando as pessoas religiosas atingem estados de forte excitação, provocados pelas suas conceções religiosas, aumenta, a par da excitação física, o estado de excitação vegetativa, aproximando-se da satisfação, sem, contudo, produzir, na realidade, uma distensão corporal. O tratamento de sacerdotes doentes revelou que o auge dos estados de êxtase religioso é frequentemente acompanhado por uma ejaculação involuntária. A satisfação sexual normal é substituída por um estado geral de excitação física que exclui o aspeto genital e provoca, contra a vontade, e como que por acaso, uma distensão parcial.

O prazer sexual foi, originariamente, como é natural, algo de bom, de belo, de agradável, em suma, aquilo que unia os homens à Natureza de modo geral. Com a separação entre o sentimento religioso e o sexual, este teve de se transformar em algo de mau, de infernal, de diabólico.

Tentei explicar noutro ponto de que modo o medo do prazer se desenvolve e quais os seus efeitos. Repetirei resumidamente: os homens que são incapazes de distensão, necessariamente acabam por considerar a excitação sexual como algo que tortura, que incomoda e que destrói. E, na realidade, a excitação sexual tortura e destrói quando não é permitida a distensão. Vemos, pois, que a conceção religiosa da sexualidade como força destruidora, demoníaca, decadente, radica em processos físicos reais. Assim a conceção da sexualidade teve de se bifurcar: os valores tipicamente religiosos e morais, como «bom», «mau», «celestial» e «terreno», «divino» e «demoníaco», etc., transformam-se em símbolos da satisfação sexual e da sua punição, por outro lado.

O profundo desejo de expansão e libertação (conscientemente dos pecados, inconscientemente daa tensão sexual) é simultaneamente afastado. Os estados de êxtase religioso não são mais que estados de excitação sexual nunca satisfeita do sistema nervoso vegetativo. A excitação religiosa não pode ser compreendida e não pode ser dominada se não se perceber a contradição que lhe é inerente. Mais do que anti-sexual, ela é em si mesma altamente sexual. Mais do que moralista, ela é profundamente antinatural, não higiénica, em termos de economia sexual.

Em nenhuma camada social florescem as histerias e as perversões, tanto como acontece nos círculos ascéticos da Igreja. Mas isto não deve levar-nos à conclusão errada de que essas pessoas devem ser tratadas como criminosos perversos. Tal como todos os outros homens a sua personalidade está dividida em duas partes: a oficial e a privada. Oficialmente, consideram a sexualidade como um pecado, mas, intimamente, sabem que não podem existir sem substitutos para a satisfação. Muitas dessas pessoas revelam-se mesmo permeáveis à solução preconizada pela economia sexual para a contradição entre a excitação sexual e a moral. Compreendem bem, desde que se consiga contactar com elas, não as repelindo, que aquilo que descrevem como sendo a união com deus, não é mais do que a ligação com o processo geral da Natureza, que o seu ego faz parte da Natureza, que, à semelhança de todos os outros homens, se sentem como um microcosmo dentro do macrocosmo. Somos levados a admitir que as suas convicções radicam num fundo de verdade e que aquilo em que acreditam é real, pois que é constituído pela corrente vegetativa do seu corpo e pelo êxtase que são capazes de sentir. O sentimento religioso é inegavelmente autêntico, mas torna-se falso na medida em que recusa a sua própria origem e a satisfação desejada inconscientemente, ocultando-a de si próprio. É isso que origina a atitude forçada de bondade, comum nos padres e nas pessoas religiosas.

Resumindo:

1)      A excitação religiosa é uma excitação vegetativa cuja natureza sexual fica encoberta.

2)      Através da mistificação da excitação, o homem religioso nega a sua sexualidade.

3)      O êxtase religioso é um substituto da excitação vegetativa orgástica.

4)      O êxtase religioso não provoca a distensão sexual, mas sim, quando muito, uma fadiga muscular e espiritual.

5)      O sentimento religioso é subjetivamente verdadeiro e assenta em bases fisiológicas.

6)      A negação da natureza sexual dessa excitação provoca falsidade de caráter.

De inicio, as crianças não acreditam em deus. A fé em deus só se inculca nelas quando surge o problema da masturbação e têm de aprender a reprimir a excitação sexual. Assim, começam a ter medo do prazer e depois a acreditar realmente em deus, a ter medo dele, e não só a temê-lo, sabendo-o omnisciente e omnipresente, mas a chamá-lo como proteção contra a sua própria excitação sexual. Tudo isto tem a função de evitar a masturbação. A inculcação das conceções religiosas processa-se, portanto, na primeira infância. Contudo essas conceções não seriam suficientes para reprimir a energia sexual da criança, se não estivessem associadas às imagens reais do pai e da mãe. Quem não respeita o pai comete um pecado, por outras palavras, quem não teme o pai, quem se entrega ao prazer sexual, é castigado. O pai real, severo, causador de frustrações, é, na imaginação da criança, o representante de deus na terra e o seu órgão executivo. E se a veneração pelo pai é prejudicada pela compreensão real das suas fraquezas e insuficiências humanas, permanece sob a forma de uma conceção de deus abstrata e mística. Do mesmo modo que a dominação patriarcal invoca deus, referindo-se à autoridade paterna, também a criança ao dizer «deus» refere-se, na realidade, ao pai. Na estrutura da criança a excitação sexual e as conceções de pai e de deus constituem uma unidade. Nos tratamentos clínicos, essa unidade depara-se-nos de modo palpável, sob a forma de um espasmo muscular genital. O desaparecimento do espasmo nos músculos genitais acompanha regularmente o desaparecimento da conceção de deus e do medo do pai. Portanto, o espasmo genital não só representa a inculcação estrutural fisiológica do temor religioso, mas também produz, simultaneamente, o medo do prazer, que se transforma na essência de toda a moral.
A inibição genital e o medo do prazer são a essência energética de todas as religiões patriarcais que negam a sexualidade.

A religiosidade hostil à sexualidade é produto da sociedade patriarcal autoritária. Neste contexto, a relação pai-filho que se nos depara em todas as religiões de tipo patriarcal não é mais do que um conteúdo necessário, socialmente condicionado, da experiencia religiosa; mas essa própria experiencia procede da repressão sexual nas sociedades patriarcais. O serviço prestado pela religião no decorrer dos tempos, a atitude de obediência e de renuncia em relação à autoridade, são apenas a função secundária da religião. Ela pode apoiar-se numa base sólida: na estrutura dos homens das sociedades patriarcais, estrutura essa que foi alterada pela repressão sexual. A fonte viva da atitude religiosa e o eixo em torno do qual se produzem os dogmas religiosos residem na negação do prazer carnal; esta realidade é evidente, sobretudo nos casos do cristianismo e do budismo.